XXVII Domingo do Tempo Comum: Mc 10,2-16 - A tentação da separação

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

O evangelho deste XXVII Domingo do Tempo Comum inicia denunciando a intenção dos fariseus, como afirma Marcos: “tentando-o”, quando perguntam a Jesus se “É certo (lícito, conforme a Lei) ao homem repudiar a sua mulher”.  Não é a primeira vez que este grupo de opositores procura colocar Jesus à prova (grego: peirazo, fazer cair na armadilha). Evidentemente, essa estratégia tem como finalidade arranjar motivos para acusá-lo e, consequentemente, levá-lo à morte (Mc 3,6). 
Na língua hebraica a palavra tentador, adversário, é Satanás (Satã: o acusador dos homens diante de Deus: 1Cr 21,1; Jó 1,6s; Zc 3,1; Ap 12,10), o que traduzido para o grego ficou diabo (aquele que separa).  Portanto, os fariseus, tentando Jesus, assumem o papel não apenas de simples opositores, mas de verdadeiros agentes da destruição do projeto de Deus. Pois tornam-se colaboradores daquele que desde o princípio tenta separar a criação e a humanidade do seu Criador. E isto se concretiza tanto na formação de mentalidades distorcidas como na indução a atitudes permissivas. No evangelho de Marcos, além dos fariseus, também encontramos outros personagens, por exemplo Pedro (8,33), que desempenham este papel de separar Jesus de sua missão, de induzir à mentira, ao erro, tentando convencer que a verdade é mentira e vice-versa. Astúcia tão antiga quanto nova! 
Os evangelhos sinóticos, logo após a narração do Batismo de Jesus, apresentam a famosa cena da Tentação no Deserto (Mt 4,13-17; Mc 1,12-13; Lc 3,21-27). Em síntese, as investidas do Satã têm como objetivo provocar uma separação entre Jesus (Filho de Deus) e a sua missão (Messias sofredor). Partem sempre de uma afirmação verdadeira: “Se és Filho de Deus”, mas exigindo como comprovação desta verdade, uma mentira que a contradiz e destrói: “Transformar pedra em pão”, “Atirar-se no precipício...”, “Prostrar-se diante do tentador, para adorá-lo”. O Tentador quer a todo custo que Jesus se torne um adversário do projeto do Pai. E começa propondo que o Filho de Deus destrua o que o Pai criou, isto é, que Jesus transforme o seu poder em força mágica e arbitrária, e mude a própria natureza das coisas criadas para o seu benefício próprio (transformar pedra em pão diante da fome). Derrotado pela obediência de Jesus à Palavra do Pai, Satã prossegue a sua investida apelando para uma leitura fundamentalista das Sagradas Escrituras, a fim de que Jesus, aderindo a esta sua leitura, destrua a Palavra do Pai. E, por fim, faz a sua mais sedutora e atraente proposta: “Tudo isto te darei”. Mas com o altíssimo preço: a destruição da filiação divina. Prostrando-se diante do adversário, Jesus reconhecê-lo-á, de agora em diante, o seu deus, por conseguinte, o seu pai. Assim, o projeto de destruição estaria garantido, pois teria a ajuda de um magnífico e potente colaborador: o Filho, adversário do Pai. Reino dividido, destruição garantida.
 
Contudo, a fidelidade ao Pai, ao seu plano e desígnio eternos, derrotou o tentador. Por outro lado, mesmo derrotado, ele não desistiu, continuou tentando o Filho de Deus durante toda a sua vida, até a sua derrota final na cruz.
Marcos nos apresenta dois fatos bem ilustrativos dessas tentativas tentadoras cujos protagonistas são os fariseus: uma diz respeito à tentativa de destruição da criação cujo auge se deu na Encarnação, quando exigiram um sinal vindo do céu, pois rejeitavam o grande sinal vindo do céu que era o próprio Jesus (8,11). Portanto, se tivessem conseguido, teriam destruído o projeto eterno do Pai realizado agora no envio do seu Filho. Jesus se recusa a obedecê-los. A outra ocasião, é justamente a tentativa de exigir de Jesus um posicionamento que destrua a Palavra primordial do Pai, que “desde o princípio da criação os fez homem e mulher. Por isso o homem deixará o seu pai e sua mãe e os dois serão uma só carne... Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe”.  
Sabemos que a união matrimonial tem a sua principal base não apenas no aspecto jurídico-canônico, ainda que este seja importante, pois garante e defende a realidade objetiva da união. Mas o fundamento da indissolubilidade reside na Revelação de Deus que conhecemos pela Escritura e está inscrito na própria natureza humana. A institucionalização da tentação da separação não é simplesmente uma tentativa de solucionar casos insustentáveis, mas uma investida sutil para destruir o plano do Criador: “Com essa atitude, o homem comete um novo pecado, aquele pecado contra Deus Criador… Deus colocou o homem e a mulher no topo da criação e confiou a eles a terra… O projeto do Criador está escrito na natureza” (Papa Francisco). 
O vínculo matrimonial, quando autêntico e real, não depende das comodidades individuais nem muito menos dos humores e sensações do momento. O ser humano cresce à medida que assume a sua vida com liberdade e responsabilidade, e por isso, precisa empenhar-se com todas as forças para restaurar as relações, assumidas livremente, e não destruí-las quando se tornam frágeis. Distorcer os princípios para acomodar-se aos defeitos de percurso é um lento e eficaz processo de destruição de valores fundamentais para a vida do ser humano em sociedade.
Como fizeram os adversários de Jesus de ontem, hoje também se verificam investidas semelhantes para separar o que Deus uniu. Um exemplo claríssimo é a tão difundida ideologia de gênero. Uma falácia perigosa que está sendo aceita como verdade por muitas pessoas, inclusive por quem diz ser cristão, mas rejeitando o que era desde o começo, coloca-se como verdadeiro adversário e, portanto, separando o que Deus uniu, colabora com a sua destruição. O Papa Francisco afirma: “A ideologia de gênero é um erro da mente humana que provoca muita confusão...Portanto, a família está sendo atacada”. A tentativa de destruir a Criação, negando a verdade da natureza, e a distorção da Palavra de Deus para garantir situações aparentemente mais cômodas, é um grande atentado à vida do ser humano, a começar pelos próprios filhos, que constituem a grande bênção do matrimônio: “O Senhor abençoa os pais nos filhos” (Sl 127). Por esta razão, Jesus conclui o seu ensinamento sobre o que Deus uniu, abençoando os frutos dessa união: as crianças trazidas a Ele.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana