XVIII Domingo Tempo Comum: Mt 14,13-21 - Só Deus multiplica, o homem apenas partilha!

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

Por causa da necessidade de adaptar o texto à sua leitura litúrgica, mas conservando a perspectiva exegético-hermenêutica do evangelista, é muito significativo que o evangelho de hoje inicie com uma referência explícita àquilo que foi narrado um pouco antes: “Quando soube da morte de João Batista” (na verdade Mt 14,13 diz apenas: “Jesus ouvindo isso, partiu dali”; para provocar justamente a curiosidade do leitor que deve se perguntar: ouvindo o quê?). Vale salientar que a morte de João Batista se deu durante o banquete que o rei Herodes ofereceu por ocasião do seu aniversário; nessa ocasião, a filha da sua ilegítima mulher, a quem o rei publicamente prometeu conceder o que quisesse, instigada por sua própria mãe Herodíades, pediu a cabeça de João Batista numa bandeja.
É intenção clara do evangelista estabelecer um paralelo (como reforça a própria liturgia ao ler Mt 14,1-12 no sábado da XVII Semana do Tempo Comum): entre o banquete de Herodes que conduz à morte o Profeta João e o banquete oferecido pelo Messias Jesus que anuncia o cumprimento das esperas messiânicas de abundância e vida em plenitude (cf. 1ª leitura). Se o banquete de Herodes acontece nas proximidades do cárcere de João Batista, que fora preso porque denunciou o pecado de adultério do rei (6º Mandamento), que deveria ser o primeiro a defender o Direito (os mandamentos) e a justiça (o seu cumprimento), o banquete de Jesus anuncia a nova páscoa, pois se dá do outro lado do mar, num lugar deserto. Se no banquete messiânico é servido um alimento que fora abençoado e multiplicado para dar vida à medida que foi compartilhado, no banquete de Herodes, a cabeça de João Batista na bandeja, representa simbolicamente o alimento que nutria o rei e seus comensais, isto é, o ódio à verdade da Palavra de Deus; contraditoriamente a celebração de vida do rei (aniversário) transforma-se em ocasião de condenação à morte do profeta. Por outro lado, o banquete do Messias garante vida às multidões cansadas e famintas, pois é prefiguração da Eucaristia, memorial da sua morte e ressurreição.
A dança da jovem que agradou o rei faz lembrar a ação ritual das prostitutas sagradas que prestam culto aos deuses pagãos de quem esperam receber benefícios. No banquete messiânico não se dança para agradar a divindade, mas se realiza o esboço do verdadeiro culto que agrada a Deus, isto é, a bênção e a ação de graças transbordam no compromisso com a vida, onde é indispensável a generosidade do pouco que se tem (5 pães de 2 peixes) a fim de que Deus conceda abundantemente tudo que se precisa.
Apesar do claro paralelo entre os dois banquetes, podemos perceber muitos elementos que tornam a narração do banquete messiânico mais ampla e independente. Assim como o martírio de Joao Batista não é uma construção simbólica, a multiplicação dos pães não pode ser interpretada simplesmente como um simples piquenique. Infelizmente a tendência racionalista-liberal defende essa distorção hermenêutica por ser mais fácil de explicar e compreender; falaciosamente acredita-se que a compreensão puramente racional do episódio narrado, interpretando-o como uma técnica horizontal de partilha, será a estratégia mais eficaz para ensinar a partilha necessária diante da concentração injusta de bens, gerando fome, miséria e falta de dignidade ao ser humano.
Um dos critérios da ciência bíblica para o reconhecimento da veracidade histórica das narrações chama-se múltipla atestação (quando se narra o mesmo fato em diversas fontes). Todos os quatro evangelistas narram esse fato, por sinal, Mateus e Marcos registraram duas multiplicações (Mt 15,32s; Mc 8,1s). Portanto, temos já um dado objetivo da ciência de interpretação bíblica. Porém, não é esse o critério decisivo para podermos acreditar que Jesus Messias multiplicou os pães e os peixes, e não apenas recolheu o que havia e redistribuiu equitativamente. Aqui está um ponto decisivo de fé, em quem e como acreditamos? O cristão acredita em Deus que criou abundantemente e faz nascer, crescer e que dá vida e a conserva. Reconhecer a ação de multiplicar, fazer surgir algo que ainda não existe, é próprio de Deus: “A terra era vazia e vaga... Deus disse... e se fez” (Gn 1,2s). Se Deus apenas reparte o que há, refaz o que já está feito, partilha o que já existe, não seria livre na sua onipotência. Outrossim, é próprio de Deus a força criativa permanente e não uma ação de reciclagem enfadonha. Diante desse Deus Criador, a sua criatura amada, o ser humano, deve aprender que a sua missão é compartilhar de tudo aquilo que para ele foi criado, e não se apropriar do que Deus criou para todos concentrando nas mãos de alguns, pois o fez de forma multiplicada justamente porque múltiplos são os seus filhos.
Jesus ao multiplicar os pães não ensinou técnicas eficientes, mas realizou gestos vitais que testemunham o seu compromisso e comprometimento com a vida: “Dai vós mesmos de comer”; ensinando que o Deus criador não despreza o que já criou: “Só temos cinco pães e dois peixes”; mostrando que tudo é dom do Criador: “Pegou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos para o céu e pronunciou a bênção (agradeceu)”; quando Jesus “partiu os pães, e os deu aos discípulos, que distribuíram às multidões”, não fez apenas uma divisão material de alguma coisa, mas anunciou a sua entrega, pois sem essa nada se realizaria, nenhuma fome seria saciada, pois só ele é o verdadeiro alimento para a vida do mundo.
Não estamos diante de um simples acontecimento fácil de explicar: técnicas e estratégias humanas, mas estamos diante de um mistério possível de acreditar: o poder criador de Deus. Se optarmos pela facilidade da explicação, nos cansaremos de promover técnicas fadadas ao fracasso. Por outro lado, se acolhermos o mistério, seremos fortalecidos pela fé que não nos faz desistir de crer que só poderemos repartir se acreditarmos que Deus faz crescer e multiplicar os seus bens e reparti-los entres nós.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana