XV Domingo do Tempo Comum: Lc 10,25-37 - Religiosos hipócritas: cúmplices de assaltantes homicidas

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

O ensinamento de Jesus neste XV Domingo do Tempo Comum coloca-nos diante de um dos maiores apelos do evangelho da Misericórdia: viver a fé não apenas nas suas expressões de culto religioso, mas como práxis de cultivo da vida, o dom precioso saído das mãos de Deus e, portanto, destinado à plenitude. A vida na sua fase de peregrinação terrena é o momento privilegiado para descobrirmos que ela é eterna, por isso deve ser tratada com dignidade. Cuidar, admirar, conservar a obra prima de um artista é a melhor maneira de prestar-lhe a fundamental e essencial homenagem. Santo Irineu (130-200 d. C.) afirma: “A glória de Deus é o homem vivo” (Gloria Dei, vivens homo). Por conseguinte, um culto que perde esse caráter essencial de compromisso com a vida, deixa de ser proclamação da glória de Deus e se torna cumplicidade com todas as formas de ameaça e destruição da vida. A chamada “Parábola do Bom Samaritano” não é apenas mais um ensinamento de Jesus sobre a importância de fazer o bem a quem quer que seja, mas é uma crítica contundente a uma religiosidade hipócrita que, buscando razões para omitir-se diante das ameaças contra a vida, torna-se cúmplice dos assaltantes da vida.
A pergunta: “Mestre, que fazer para herdar a vida eterna?”, se não tivesse como motivação: “colocar Jesus à prova” (grego ekpeirazon: tentando), seria uma questão legítima, pois está presente no coração de todo ser humano, ainda que formulada de diversas maneiras. Querendo provar Jesus, o jurista passa de intérprete-aprendiz da Lei para assumir o papel de tentador do Mestre que no início, no episódio das tentações (cf. 4,10), quis distorcer a autêntica compreensão da Palavra de Deus. Jesus, porém, aprofunda a questão perguntando: “O que está na Escritura? E como lês?”. A Escritura sem a sua leitura (aplicação na vida) pode se tornar a grande tentação do religioso, abrindo espaço para todo tipo de fundamentalismos. Em dois momentos, o Mestre procura ampliar o horizonte do seu interlocutor. A primeira pergunta é fácil de responder: “Respondeste corretamente”. Enquanto que a segunda não se responde teoricamente, pois só as atitudes são capazes de responder: “Faz isto e viverás!”.
A distinção feita por Jesus entre “o que está escrito e como se lê” não é pura especulação acadêmica das discussões entre mestres da Escritura, mas aponta para a necessidade de recuperar a unidade entre os dois aspectos fundamentais da Palavra de Deus: A Escritura e a Vida. Separando o saber a Escritura do viver a Palavra, impedirá dar a resposta a tal pergunta. Ao contar essa parábola Jesus apresenta três modos de ler a síntese da Torá (o mandamento do amor a Deus e ao próximo). Os três personagens mais do que representantes étnicos (judeu e samaritano), indicam maneiras de ler a vida para conhecer a Palavra, e modos de ler a Escritura para compreender ou não os apelos da vida. A vida está para além das suas circunstâncias sociais, políticas ou étnico-religiosas, tanto que nem os assaltantes nem o assaltado são identificados como judeus ou pagãos. Atentar contra a vida ou comprometer-se com ela transcende todas as barreiras, vai depender de como fazemos a sua interpretação. O caminho será sempre possibilidade de aproximar-se ou optar ir para longe.
Tanto para o sacerdote quanto para o levita, a reação diante do quase morto que encontraram no mesmo caminho foi passar para o outro lado e ir embora (grego antiparérchomai: passar afastando-se na direção contrária). Esta atitude indica um modo de ler a Torá que, por sua vez, ensinava: “Aquele que tocar um cadáver, qualquer que seja o morto, ficará impuro...Todo aquele que tocar um morto, o corpo de alguém que morreu, e não se purificar, contamina a Habitação de Javé; tal homem será eliminado de Israel” (Nm 19,11s). A razão era clara e indiscutível: cumprimento da Lei, e como homens do culto, desobedecendo esta lei, além de correrem o risco de se contaminar, também contaminariam a Casa de Deus, cuja pena era a morte. Tinham bem presente a Lei, mas não conseguiram relacioná-la com a vida, viam a Lei, mas não enxergavam a vida; não foram capazes de aproximar-se para perceber que ali não estava um cadáver, mas uma pessoa, que se fosse abandonada por eles, arriscava tornar-se um cadáver, com o qual não estariam mais obrigados a fazer nada. O samaritano, geralmente visto como um estrangeiro, objeto de inimizades e herege, na parábola aparece como aquele que dá provas que não apenas conhece a Lei (os samaritanos têm o Pentateuco), mas que consegue aproximar-se da vida para melhor compreender o Mandamento e colocá-lo em prática. Pois a Lei ensina: “Se encontrares o boi do teu inimigo, ou o seu jumento, desgarrado, lho reconduzirás. Se vires cair debaixo da carga o jumento daquele que te odeia, não o abandonarás, mas o ajudarás a erguê-lo” (Ex 23,4s). Se até o socorro da vida dos animais que se encontram em risco de morte (inclusive dos inimigos) está entre os imperativos da Lei de Deus, quanto mais não será o cuidado com a vida do próximo em situações de risco. O que o jurista e seus companheiros (sacerdote e levita) ainda não compreendiam em relação à vivência dos mandamentos (Lv 19.18; Dt 6,5), o samaritano ensina com atitudes: “Amarás o Senhor, teu Deus”/ “estava de viagem, chegou perto dele viu e sentiu compaixão”: compaixão na Bíblia é a misericórdia de Deus, portanto o viajante manifesta sintonia com os próprios sentimentos de Deus, o que só seria possível se Deus tivesse o primado na sua vida. “Com todo o teu coração e com toda a tua alma”/ “fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas”: o coração na Bíblia é a sede das decisões, não apenas dos afetos, e a alma representa a interioridade, portanto, o viajante vendo o quase morto decide prestar-lhe socorro e não apenas expressar sentimentos estéreis de comiseração. “Com toda a tua força e com toda a tua inteligência”/ “Colocou o homem em seu próprio animal, levou-o para pensão, cuidou dele”, o sentimento de misericórdia do samaritano expandiu como força para os seus braços a fim de erguer o morto caído, e desapego de seus bens (“dois denários”) e de seu tempo (“Quando voltar”). “Faz isso e viverás!” Eis a resposta: fazer-se próximo para aproximar o que está escrito do que é vivido e, assim, ter a vida em plenitude.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana