XIX Domingo do Tempo Comum: Jo 6,41-51 - Chorar de barriga cheia

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

O evangelho de hoje retoma o tema do sinal dos pães multiplicados, aprofundando o significado do que Jesus fez, mas que não foi devidamente compreendido. O povo que se alimentou de pães não é capaz de reconhecer que o Pão da vida é Jesus, o alimento mais necessário, aquele que não perece. O pão material que comeram não é o definitivo, pois a fome e a sede só serão saciadas quando se alimentarem de Jesus, de sua presença, de sua palavra e de sua proposta de vida. Portanto, não basta ter o estômago cheio, é preciso preencher o coração e a mente deste alimento dado pelo próprio Pai, que não suscita simplesmente perguntas (maná: o que é isso?), mas que é a resposta do Pai, no seu Filho, à fome de vida plena do povo. João relê o sinal dos pães em chave “exodal-eucarística”, e por isso, ao longo do discurso do Pão da vida, vai retomando temas que, presentes na experiência da saída do Egito e travessia do deserto rumo à Terra Prometida, ajudam a refletir sobre a missão do novo Moisés, que, mesmo sendo identificado como filho de José e de Maria, é o verdadeiro pão descido do céu, dado pelo Pai, penhor da ressurreição. 
Na perícope hodierna evidencia-se o tema da murmuração: “Os judeus começaram a murmurar”; é a reação diante da palavra reveladora de Jesus: “Eu sou o pão que desceu do céu”. Tal murmuração é paralela à murmuração dos israelitas contra Moisés no deserto (cf. Ex 17,3; Nm 11,1). Assim como o povo murmurava contra o primeiro doador do pão do céu (maná), isto é, Moisés, agora os que já tinham enchido o estômago murmuram contra o segundo, que não é apenas um doador de pães, mas o próprio pão oferecido: “Eis aqui o pão vivo descido do céu: quem dele comer nunca morrerá”.  Contudo, tanto a murmuração no deserto quanto aquela contra Jesus têm um sério agravante, isto é, a reação negativa do povo diante do dom, e por conseguinte é murmuração contra o próprio Deus. João ao estabelecer esse paralelismo (AT-NT) pretende introduzir o cenário da rejeição a Jesus que culminará na sua morte, pois na cruz se realiza a sua hora, a sua entrega total, a entrega da sua carne e do seu sangue. Se este pão garante a vida eterna, cuja condição fundamental é a ressurreição, é preciso alimentar-se dele reconhecendo-o não apenas como um enviado do Pai, mas como seu Filho. Pois é por causa do Filho que Deus elege o seu povo e o prepara para acolhê-lo: “Ninguém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o atrai”. 
Enquanto o povo murmura (grego: egongyzon, fazer barulho), Jesus faz ouvir o grande apelo de Deus já presente no Antigo Testamento: estabelecer com seu povo uma aliança nova e eterna. No discurso do pão da vida, aparece então o tema da eleição divina e da vocação do povo. Contudo, é preciso tornar-se discípulo de Deus: “Todos serão discípulos de Deus”, pois é o próprio Pai que através da sua Palavra instrui e prepara o seu povo para que acolha o seu Filho: “quem escutou o Pai e por Ele foi instruído vem a mim”. Os judeus reconhecem que Jesus multiplicou os pães, mas não acreditam que Ele é o pão descido do céu. Mostram-se conhecedores das suas origens: “Não é este o filho de José? Não conhecemos seu pai e sua mãe?” Mas como não dão o passo da fé para acreditar nele como enviado do Pai, revelam-se, portanto, ignorantes das Escrituras, pois elas são a grande instrução de Deus na preparação do povo para a chegada do Messias. Aproximar-se de Jesus, a Palavra encarnada e não apenas uma palavra escrita, é deixar-se instruir pelo próprio Deus. Aqueles que se consideram conhecedores das Escrituras, mas que não reconhecem a necessidade de serem instruídos, de aprender, nunca poderão fazer o encontro com a Palavra, estarão sempre na superficialidade (“Não é Ele o Filho de José?”). Não ouvirão a Palavra do Filho, mas apenas as suas próprias murmurações.  
Mesmo tendo feito repetidas referências à sua encarnação quenótica (“pão que desceu do céu”, “aquele que vem de junto do Pai”), os judeus incrédulos apontam para a sua inegável humanidade como prova evidente contra a sua origem divina. Exigem que Jesus prove o que pode fazer: “Que sinais realizas para que cremos?”, mas não aceitam a verdade do que Ele é. Aqui também encontramos um paralelo entre povo x Escritura, povo x Jesus. Pensavam que conheciam as Escrituras, mas não acreditaram em Jesus; pensavam que conheciam Jesus, mas não o reconheceram como Filho de Deus encarnado que armou sua tenda entre nós (Jo 1,14). 
Precisamos ter cuidado para não transformar o anúncio do Evangelho, fruto do encontro pessoal com Jesus, em murmurações de quem, tendo recebido abundantemente o alimento da vida eterna (Palavra, Eucaristia), fica exigindo coisas menores para crer. Se o coração não estiver cheio de fé para acolher o alimento da vida eterna, cairemos sempre em murmurações de um estômago sempre insaciável apesar de estar empanturrado.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana