XIII Domingo do Tempo Comum: Mc 5,21-43 - Não passar de mão em mão

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

Os dois episódios narrados no evangelho de hoje estão intrinsicamente relacionados não apenas pela sua contemporânea ocorrência, mas sobretudo por sua recíproca iluminação. A maestria do evangelista, evidente inspiração divina, ao apresentar a dependência e relação entre as duas cenas de um único ato, nos coloca na sua perspectiva fundamental, isto é, uma aproximação mais coerente do mistério da pessoa de Jesus e da sua missão: o salvador do ser humano por completo (mulher: criança-adulta: símbolo de totalidade). A narrativa inicia com um pedido de um pai, cujo nome torna-se chave de leitura importante para a compreensão do que será apresentado de forma detalhada: “Aproximou-se, então um chefe da sinagoga, chamado Jairo”. Jairo em hebraico (Ya’ir) significa Javé ilumina (Deus desperta). Numa atitude de fé e confiança, – caiu aos pés e pediu com insistência –, mesmo sendo uma fé necessitada de amadurecimento, – Não tenhas medo. Basta continuar a ter fé –, o pai demonstra que só a fé faz enxergar a verdade sobre Jesus, pois é a iluminação necessária para aproximar-se dele e alcançar a salvação, a vida em plenitude. 
Para o cristão, enraizado na fé, a doença e a morte não são realidades definitivas nem desesperadoras. Jesus não estanca apenas um fluxo de sangue de uma mulher desesperada diante de tantas tentativas frustradas, mas restitui-lhe o sentido da vida, garantindo que a fé abre o horizonte estreito de quem queria ao menos tocar nas suas vestes; se para a mulher tocar nas vestes de Jesus já era um grande feito, Jesus a surpreende declarando que suas mãos crentes não tocaram apenas a extremidade de suas vestes, mas alcançaram a profundidade do seu coração misericordioso; portanto, ela precisa saber disso: “Quem me tocou?” . Ao ressuscitar a menina, Jesus não está apenas concedendo alguns anos de vida a mais a quem a perdera prematuramente, mas ordenando-lhe: “Levanta-te” (em grego: egeire, levantar, despertar, ressuscitar), anuncia que a vida eterna é o nosso destino definitivo.
As duas mulheres do evangelho representam uma única realidade vista na sua totalidade, isto é, a vida, ainda que passe por ameaças (doença: mulher) e pela sua perda (morte: a criança), Jesus é o salvador que tem a palavra definitiva: “Vai em paz... ela não morreu”. O itinerário de ambas as situações parte de uma incipiente fé-confiança em Jesus e atinge o seu ápice no encontro pessoal com ele como fonte de salvação e vida plena. O evangelista usa metáforas (por força do semitismo) muitas vezes difíceis de serem traduzidas por falta de correspondência nos outros contextos e ambientes semântico-culturais; isso dificulta um olhar mais profundo para o acontecimento narrado, que não quer ser apenas uma crônica documental, mas uma verdadeira porta de entrada para o mistério da pessoa de Jesus. Se evidenciarmos algumas expressões (conservando o aspecto literal) podemos ver um paralelo entre os vários personagens principais (Jesus-Jairo/criança-adulta). Tanto Jairo como Jesus são identificados como “pai”. Jairo diz: “Vem impor as mãos sobre a minha filhinha”, por outro lado, declara Jesus: “Filha, a tua fé te curou”. Jairo pede insistentemente para que a filha recupere a saúde (sare) e não morra (viva); Jesus à mulher que queria a saúde, concede principalmente o dom escatológico: “Vai em paz!”. As duas filhas têm algo em comum representado pelo número 12. Num primeiro momento, vem em mente a pertença ao Povo de Deus (12 tribos de Israel). Na verdade, a introdução da perícope de hoje diz: “Jesus atravessou de novo... para outra margem”. Isto significa que tinha retornado do mundo pagão (cf. 4,35, evangelho do domingo passado) ao ambiente judaico, cujas ovelhas perdidas são as primeiras destinatárias da sua missão salvífica (cf. Mt 10,6). Contudo, o número 12 as une por uma situação dramática: há doze anos a mulher sofria de uma hemorragia e aos 12 anos a criança morreu. O fluxo de sangue na mulher não era apenas uma doença física, mas uma verdadeira morte moral e religiosa, pois era impedida de participar plenamente da vida sócio-religiosa por causa da impureza ritual (cf. Lv 15,19-30), além do mais, estava impedida de gerar vida, por isso o seu estado atual era de perda de vida (sangue na Bíblia é vida). Marcos usando metáforas vai chamar a doença dela de flagelo (grego: mástiks, flagelo, chicote); imagem muito eloquente, pois quando alguém é chicoteado, o sangue espirra violentamente, podendo chegar à própria morte por causa da tortura. Além do mais, a hemorragia na pena do evangelista é chamada de “fonte de sangue” (grego: pegué tou haimatos); Jesus no encontro com a Samaritana lhe promete que se ela beber da água que ele lhe der, essa se transformará nela em fonte de água que jorra para a vida eterna (cf. Jo 4,14).
Portanto, ao estancar a fonte de perda de sangue, isto é, que jorrava para morte, Jesus devolve à mulher a capacidade de jorrar para vida, pois agora poderá gerar filhos, restabelecer os laços de convivência, participar do culto na sinagoga (cujo responsável era Jairo, que agora sendo testemunha da cura, não poderá mais impedi-la de estar no lugar da liturgia). Continuando o paralelismo, o chefe da Sinagoga pede a Jesus que vá impor as mãos sobre a filhinha moribunda, mais uma metáfora de Marcos: “que estava nas últimas” (grego: eschatôs, nos extremos). A mulher deseja tocar pelo menos nas extremidades das vestes de Jesus (detalhe importante referido no texto paralelo de Mt 9,20; grego: kraspedori, franja); a Lei prescrevia colocar franjas nos quatro cantos do manto para lembrar de respeitar os mandamentos (cf. Nm 15,37-39; Dt 22,12). Um aparente detalhe, mas de rico significado: tanto a mulher quanto Jairo conhecem as proibições previstas na Lei (tocar numa mulher com fluxo de sangue cf. Lv 15,19 e num morto cf. Lv 21,11) e que, por conseguinte, tornavam impuro quem o fizesse. Mas colocam Jesus numa posição de “transgressor” da Lei. Ao querer tocar justamente na orla (recordação de que não se deve transgredir a Lei), a mulher faz o grande reconhecimento de que Jesus é o Senhor da vida, e por isso é Senhor da Lei (paralelo com o “Senhor do sábado”). A fé-confiança de ambos em Jesus torna-se critério fundamental para interpretar a Lei e seus corolários, pois não estão diante de uma Escritura morta, mas do Verbo da vida, o único que pode interpretar a Lei na sua verdade e libertar para a vida. Tanto a mulher quanto a menina são salvas pela palavra de Jesus que se torna o seu verdadeiro Pai (genitor: aquele que gera, dá a vida). O ponto mais alto de encontro entre essas duas mulheres se dá justamente na radical transformação de suas vidas ameaçadas pela doença e pela morte. A mulher-adulta que durante 12 anos perdia a vida, por causa da hemorragia, e era impedida de ter filhos, agora pela fé torna-se fonte de vida e recupera a paz; por sua vez, a mulher-menina que morre justamente no momento de sua primeira menstruação (com muita probabilidade aos 12 anos), desperta para uma nova vida dada pela palavra de Jesus; o fato de caminhar, porque tinha doze anos, demonstra o dinamismo da vida chamada a seguir os passos de Jesus, único caminho que conduz à vida.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana