Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
A Solenidade de Corpus Christi reafirma a centralidade do Mistério Pascal celebrado na Eucaristia, que cotidianamente alimenta a Igreja na sua peregrinação rumo ao banquete eterno. Para além de motivações apologéticas ou devocionais, a liturgia de hoje nos convida a mergulhar no Mistério de Deus, que por amor, se faz presente no meio do seu povo para nutri-lo não apenas com um alimento material, mas com a sua própria presença: “Isto é o meu corpo... Isto é o meu sangue”, estabelecendo com ele uma comunhão indestrutível. A primeira leitura (Gn 14,18-20) nos apresenta um personagem enigmático: Melquisedec, rei de Salém que, oferecendo pão e vinho a Abrão, torna-se prefiguração do sacrifício de Cristo. Contudo, não só o pão e o vinho apresentados nos remetem à Eucaristia, mas sobretudo as palavras do Rei de Salém confirmam essa prefiguração: “Bendito seja Abrão... Bendito seja o Deus Altíssimo”, pois a palavra utilizada (tanto o verbo quanto o adjetivo: abençoar/bendizer e bendito) traduzem a berakah hebraica que já tinha aparecido na ocasião do chamado de Abrão: “Sai da tua terra... te abençoarei... sê uma bênção... abençoarei...” (Gn 12,1-3). A bênção na tradição bíblica, diferente de muitos contextos pagãos que a consideram como invocação mágica sobre coisas e pessoas a fim de envolvê-los de uma redoma de proteção, é uma declaração de um bem reconhecido e, portanto, testemunhado. O Deus Altíssimo não se tornou bendito após as palavras de Melquisedec, mas palavras da bênção proclamam essa realidade. Abrão não se tornou bendito porque Melquisedec o abençoou, mas porque o próprio Deus o fez. A segunda leitura (1Cor 11,23-26) é um dos textos mais antigos do relato da instituição da Eucaristia. São Paulo introduz a sua narração com uma expressão intrigante: “O que recebi do Senhor foi isso que eu vos transmiti”. Todos nós sabemos que Paulo não fez parte do grupo que conviveu com Jesus, nem estava presente na última ceia. Portanto, o que ele recebe pela Tradição da comunidade é verdadeiramente recebido do Senhor. A concepção eclesiológica de Paulo não lhe permite separar a comunidade (Igreja) do seu Senhor. A sua experiência do encontro com o Senhor Ressuscitado no caminho de Damasco (cf. At 9) foi decisivo para que ele entendesse que não existe Igreja (o caminho) sem ser Corpo de Cristo: “Saul, Saul por que me persegues? Ele perguntou: Quem és tu, Senhor? E a resposta: ‘Eu sou Jesus, a quem tu estás perseguindo’”. Objetivamente Paulo não estava perseguindo Jesus, pois estava convencido de que ele havia morrido. Paulo perseguia a comunidade, os que aderiram ao Caminho. Portanto, afirmar que recebeu do Ressuscitado, é a mesma coisa que ter recebido da comunidade. A eucaristia para nós não é um rito ou um culto qualquer, mas a memória (tornar presente) da vida, paixão, morte e ressurreição do Senhor: “Todas as vezes, de fato, que comerdes deste pão e beberdes deste cálice, estareis proclamando a morte do Senhor, até que ele venha”. Celebrar a Eucaristia é crescer na consciência da identidade da Igreja; na Eucaristia, a Igreja descobre ainda mais o que ela é. Sem uma permanente e profunda relação com o seu Senhor, a Igreja perderia a sua lucidez não apenas em relação à sua identidade, mas também no que concerne à sua missão no mundo. Diante de tão grande necessidade, o próprio Senhor não apenas realiza a Eucaristia, mas a institui com um mandamento: “Fazei isto em memória de mim”. A Eucaristia não é uma opção entre outras de culto, mas exigência para quem ama e acredita no Senhor e na sua palavra: “Quem me ama guardará a minha palavra” (Jo 14,23). O evangelho deste ano C é uma releitura da multiplicação dos pães e peixes à luz da experiência eucarística. O evangelista não pretende reproduzir fotograficamente o milagre, mas apresentar alguns elementos que prefiguram o que mais tarde será o memorial da presença do Senhor, uma vez que quando o evangelho foi escrito a celebração eucarística já era uma constante na comunidade. Evidenciam-se na narração 4 gestos que constituem essencialmente o rito eucarístico: Jesus tomou... abençoou-os... partiu e deu, assim como fez o Senhor na última ceia ao instituir o seu memorial. Recebendo do Senhor isto que ele fez, a Igreja ao longo da sua história atualiza esses gestos que se realizam de forma muito clara durante a celebração (tomar: apresentação das ofertas; dar graças: a oração eucarística; partir: fração do pão acompanhada pela litania do cordeiro de Deus; dar: a comunhão).A celebração de hoje vai para além de uma simples devoção eucarística, mas nos coloca diante do grande desafio lembrado por Bento XVI: reconhecer a Eucaristia como fonte e ápice da vida e da missão da Igreja (cf. Sacramentum Caritatis), partindo da fé, pois a Eucaristia é mistério acreditado; nutrindo-se desse mistério ao celebrá-lo, e assumindo as suas consequências, pois a Eucaristia é mistério a ser vivido.
Dom André Vital Félix da Silva, SCJBispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CEMestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana

Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana