Solenidade de Cristo Rei: Lc 23,35-43 - Insultas ou defendes o teu Rei?

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

A Solenidade de Cristo, Rei do Universo, mais do que marcar o término do Ano Litúrgico, é anúncio profético da conclusão de toda a história: Aquele que se ofereceu na cruz, vítima pura e pacífica e realizou a redenção da humanidade, entregará ao Pai um reino eterno e universal (Prefácio da Solenidade de Cristo Rei). Portanto, tudo se encaminha para o definitivo estabelecimento do Reino de Deus. A cada Eucaristia anunciamos esta verdade e renovamos o nosso compromisso de colaborar com a instauração desse Reino. O Reino de Deus não é mais uma utopia que pretende enganar a humanidade a fim de que ela não enlouqueça diante da sua impotência de fazer acontecer, no aqui e agora, as suas aspirações de justiça, paz, igualdade, etc.
O cristão autêntico não se pergunta se o Cristo vencerá ou se ainda há esperança de que Ele reine. O verdadeiro discípulo do Mestre não tem dúvida de que Ele já é vitorioso, e que o seu reinado já foi inaugurado: “Hoje estarás comigo no paraíso”. Por outro lado, anunciar a vitória de Cristo Rei é optar pelo seu caminho e destino; é vencer a tentação de ficar apenas assistindo passivamente à sua luta, ou mesmo, diante do desânimo e frustrações humanas, passar para o outro lado, tornando-se um adversário dele, colaborando com o antirreino. A cruz de Jesus não é apenas instrumento de suplício, mas prova da sua fidelidade ao Pai, confundindo os seus opositores. A cruz é o trono do qual Ele exerce a sua suprema autoridade, não abdica do seu poder real, mas o manifesta sobretudo no perdão e na misericórdia para aqueles que o reconhecem, apesar de seu sofrimento, como Salvador da humanidade.   
Nas atitudes e reações daqueles que estavam presentes no calvário, Lucas nos apresenta, num movimento crescente, os três graus de cumplicidade na execução da morte de Jesus, ápice da rejeição à sua pessoa e ao seu projeto de vida. Parte-se da incredulidade dos chefes do povo, passando pelo escárnio dos soldados, até culminar na blasfêmia proferida por um dos malfeitores pendentes da cruz. Essas três reações, na verdade, são as últimas tentativas (tentações) de convencer Jesus de trair o projeto do Pai, negando a sua encarnação e fazendo-o romper definitivamente com a sua missão de Messias Sofredor. 
No início do evangelho, Lucas finaliza a narração das tentações afirmando: “Tendo acabado toda a tentação, o diabo o deixou até o tempo oportuno” (grego: kairós, Lc 4,13). Eis, portanto, o tempo oportuno, o momento decisivo para Jesus testemunhar a sua fidelidade ao Pai e ao seu projeto de salvação. 
Assim como o diabo introduzia suas propostas tentadoras com a expressão: “Se és Filho de Deus”, os chefes, os soldados e o malfeitor também fazem referência aos títulos de Jesus (Filho de Deus, Rei dos Judeus, Messias). Tanto o diabo como os outros exigem que Jesus dê provas disso. Para o diabo, a prova era usar a sua prerrogativa divina em benefício próprio, isto é, matar a própria fome; para os chefes, ser filho de Deus era salvar-se a si mesmo. Esse é o primeiro grau de cumplicidade com o projeto do diabo: exigir que o Messias não seja o servo sofredor, e por isso não acreditam que aquele crucificado, coberto de dores, fosse o Messias. Eis por que “ridicularizavam-no (grego: eksemuktérizon, contorcer o nariz, virar-se para não ver, caçoar): a outros salvou, que salve a si mesmo, se é o Messias de Deus, o Eleito”. Os primeiros que deveriam ter reconhecido Jesus como o Messias fazem dele objeto de riso (brincadeira), não veem que o crucificado é o Deus encarnado que levou a sério a sua missão, até as últimas consequências, não permitindo que as pessoas fossem tratadas com menosprezo, tornando-se, assim, o defensor dos postos à margem. 
Se o diabo prometeu a Jesus dar-lhe todos os reinos da terra, os soldados insultam Jesus ironizando com o título de “Rei dos Judeus”. Esse é o segundo grau de cumplicidade com o projeto do diabo: “traziam-lhe vinagre, e diziam: Se és o Rei dos Judeus, salva-te a ti mesmo”. Àquele cuja dignidade real duvidam, oferecem a bebida dos miseráveis (vinagre: vinho podre), e assim reiteram que o crucificado não pode ser um rei, pois não tinha nem reinos nem poderes, visto que quando teve a oportunidade de recebê-los (do diabo), recusou. Na última tentação, o diabo sugere a Jesus, apoiando-se na Escritura, reivindicar toda isenção de dificuldade e problema, pois sendo um protegido de Deus, nada o poderia atingir, e caso se encontrasse em situações adversas, o Altíssimo enviaria os seus anjos para livrá-lo. Esta é a mentalidade do malfeitor, a sua blasfêmia representa o terceiro grau de cumplicidade com o projeto do diabo: “Não és tu o Messias? Salva-te a ti mesmo e a nós”. Assim como o diabo foi derrotado no início da vida pública de Jesus, tal derrota é confirmada no julgamento da cruz. Portanto, as palavras do bom ladrão representam a grande proclamação desse julgamento: “Ele não fez nenhum mal”. Pedro, no seu discurso na casa de Cornélio, dirá: “Como Deus o ungiu (Messias) com o Espírito Santo e com poder, ele que passou fazendo o bem” (At 10,38s). Eis a grande prova de que Jesus é o Messias, o Eleito de Deus. Participar do seu Reino é proclamar essa verdade e comprometer-se com ela. Enquanto todos os opositores exigiram de Jesus que abandonasse a cruz e desse provas de que era o Messias, o Filho de Deus, o bom ladrão, pregado na cruz, reconhece quem é aquele que está ao seu lado: “Jesus” e, por isso, faz-lhe um pedido para permanecer sempre do seu lado: “lembra-te de mim quando estiveres no teu reinado”. 
Enquanto os adversários se dirigiam a Jesus usando ironicamente os seus títulos, o bom ladrão dirige-se a Ele, chamando-o por seu nome, isto é: “Deus salva” (Jesus), grande proclamação de fé, diante da incredulidade dos chefes, dos soldados e do malfeitor que acreditavam que Jesus só poderia salvar abandonando a cruz, fugindo da morte. Assim como o tentador, todos os adversários do Reino querem um Jesus sem cruz. A tentação de abandonar a cruz torna-se insulto e blasfêmia ao Crucificado. Distanciar-se da cruz é ser impedido de ouvir a grande verdade da sua vitória, da sua ressurreição que alimenta a nossa esperança: “Em verdade vos digo: ‘Hoje mesmo estarás comigo no paraíso’”.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana