Sexta-feira Santa: Jo 18,1-19,42 - Liberdade soberana do Crucificado

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

A celebração da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo não é, lamentavelmente como pensam alguns, a teatralização de um velório transitório marcado por luto e pranto para favorecer um sentimentalismo artificial e estéril. A comunidade do Ressuscitado crê que Ele está vivo, por isso não se reúne para oficializar suas exéquias, mas para fazer memória da sua bem-aventurada e gloriosa paixão, pois caso contrário, estaria traindo o seu verdadeiro Senhor, o mesmo que morreu e ressuscitou. Já no cristianismo primitivo havia uma tendência a minimizar a paixão e morte de Jesus, com a desculpa de que Ele estava vivo. Por isso, o próprio São Paulo não se cansava de denunciar este perigo: “Sede meus imitadores... Pois há muitos dos quais muitas vezes eu vos disse e agora repito, chorando, que são inimigos da cruz de Cristo” (Fl 3,17-18). Ter diante dos olhos a imagem do Cristo crucificado não é tendência masoquista, mas necessidade permanente de quem deseja conhecê-lo, amá-lo e dele se tornar uma testemunha no mundo: “Quem quiser ser meu discípulo renuncie a si mesmo tome a sua cruz e me siga” (Mt 16,24). O anúncio da vitória de Cristo perde a sua força se não for precedido pela memória da sua paixão e morte. Diante da tendência hodierna de um cristianismo light, soft e self-service, sem sacrifícios e abnegação amorosa, urge repetir o alerta de São Paulo: “Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou, a vós ante cujos olhos foi desenhada a imagem de Jesus Cristo crucificado?” (Gl 3,1). Todos os evangelistas narram, a partir de suas respectivas teologias, a paixão e morte do Senhor. Contudo, para este dia, a Igreja escolheu a narração de João, que não nos transmite apenas um relato dos fatos em terceira pessoa, mas é ele mesmo a testemunha-contemplativa desse acontecimento: “Aquele que viu dá testemunho e seu testemunho é verdadeiro; e ele sabe que diz a verdade, para que vós creiais”. Portanto, fazer memória da paixão e morte do Senhor é imprescindível para conhecer a sua verdade e dar testemunho dele, sermos de verdade seus discípulos amados. 
E o que viu João e deve ver todo cristão ao contemplar o mistério do sofrimento e da morte do seu Senhor? 
1. A coragem de Jesus, que toma a defesa dos seus discípulos: “Se é a mim que procurais, então deixai que estes se retirem”. Ele defende a nossa vida;
2.  A fidelidade de Jesus ao Pai, apesar do iminente sofrimento: “Não vou beber o cálice que o Pai me deu?” Ele derramou seu sangue por nós;
3. A confiança de Jesus nos seus discípulos: “Por que me interrogas? Pergunta aos que ouviram o que falei; eles sabem o que eu disse”. Ele tem palavras de vida eterna;
4. A indignação de Jesus diante da injustiça: “Se respondi mal, mostra em quê; mas se falei bem por que me bates?” Ele nos ensina a lutar contra toda sujeição e opressão;
5. A verdade testemunhada por Jesus: “Eu nasci e vim ao mundo para isto: dar testemunho da verdade. Quem é da verdade escuta a minha voz”. Ele nos torna verdadeiramente livres;
6. A filiação de Jesus repartida com os seus seguidores: “Mulher, este é o teu filho; Esta é tua mãe”. Ele não nos deixou órfãos;
7. A garantia de vida nova concedida pelo dom do Espírito de Jesus: “E, inclinando a cabeça, entregou o espírito”. Ele nos constitui povo da Nova Aliança derramando o seu espírito sobre nós.
Naquela tarde de sexta-feira, no altar da cruz, e nesta sexta-feira de hoje, deparamo-nos com o ponto mais alto da revelação da verdade sobre Jesus. Não evoca-se apenas o seu sofrimento e a sua morte, mas a sua encarnação, pois ele mesmo afirma diante de Pilatos para que veio ao mundo; na sua flagelação, o auge de todas as rejeições e perseguições sofridas ao longo do seu ministério; no seu grito: “Tenho sede”, a confirmação de toda a sua missão de matar a sede da humanidade: “Quem tiver sede, venha a mim e beba... De seu seio jorrarão rios de água viva” (Jo 7,38). Na entrega do seu Espírito, o anúncio do dom de sua ressurreição. 
Cristão que chega só na Vigília Pascal ou no Domingo da ressurreição é como torcedor que aguarda, em casa, apenas o resultado da partida; certamente alegra-se com a vitória, mas por não ter vibrado com convicção enquanto seu time lutava, não sabe quanto suor e sangue foram derramados para depois poder levantar aquela taça, não sabe quanto vale aquela vitória. Terá apenas informação de um placar frio e sem vida. 
A vitória de Jesus ressuscitado tem as marcas indeléveis do Cristo crucificado. Se as amarras da morte e a pedra do sepulcro não o aprisionaram na morte foi porque na cruz ele testemunhou sua liberdade soberana: “Ninguém tira a minha vida, mas eu a dou livremente. Tenho o poder de entregá-la e poder de retomá-la” (Jo 10,18).



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana