Quarta-feira de Cinzas: Mt 6,1-6.16-18 - Quaresma x vitrine da religião hipócrita

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

A celebração da Quarta-feira de Cinzas nos faz um veemente convite para vivermos a Quaresma como tempo sumamente pedagógico, tempo favorável que nos ajuda a intensificar, de modo muito prático, o aprendizado de um estilo de vida, imprescindível para o nosso crescimento humano e espiritual. É a própria palavra de Jesus que nos introduz nesse tempo de graça: “Ficai atentos para não praticar a vossa justiça na frente dos homens só para serdes vistos por eles”. A prática da justiça do Reino anunciado por Jesus nas suas palavras e instaurado no mundo pelas suas ações não é um mero conjunto de atos isolados de piedade, mas atitudes que testemunham um processo permanente de conversão, que exige um retorno autêntico ao relacionamento equilibrado com o semelhante (esmola), com Deus (oração), consigo mesmo (jejum).  Não é representação teatral (hipocrisia) para ser vista, reconhecida e paga pelos homens: “Já receberam o seu salário” (grego: misthos, recompensa, pagamento), mas ação da graça do Pai que está no céu e que vê tudo, concedendo a verdadeira recompensa a quem não se esconde por trás de máscaras, mas rompe com o pecado e, portanto: “Deste modo vos tornareis filhos do vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,45).
Recordando as três grandes práticas da religião de Israel: esmola, oração e jejum, Jesus recupera o seu significado mais genuíno e os seus efeitos mais necessários. Apesar de estarem dispostas numa ordem linear, a esmola, a oração e o jejum não podem ser considerados separadamente, nem muito menos numa ordem de preferência. Pois a caridade (grego: eleemosyne, da mesma raiz de ser misericordoso) só será autêntica se for motivada por um verdadeiro e comprometedor sentimento de solidariedade para com o próximo, e só terá raízes se brotar do interior de quem está aberto ao Transcendente. Pois, sem o cultivo da vida interior (oração), a esmola não passará de assistencialismo escravizador ou mesmo ocasião de humilhação do semelhante necessitado. Por conseguinte, a “caridade” motivada por aplausos é uma armadilha para nos colocarmos no centro, e banir Deus do horizonte da vida. Pois podemos ser “bonzinhos” sem Ele, basta fazer o “bem”. Contudo, a oração nos ajuda a equilibrar os nossos sentimentos e motivações na prática do bem e a corrigir a nossa presunção e autossuficiência, reconhecendo que a fonte da nossa bondade está Nele, pois “só Ele é bom” (Mt 19,17).
Além do mais, a oração nos conduz à descoberta de uma fome ainda maior, cujo jejum pode ser uma valiosa experiência no nível concreto e de ordem didática. A fome do pão material vivenciada em atitude orante nos ajuda a fazer a experiência da fome de Deus. Pedagogicamente, o jejum nos favorece o exercício da convicção de que se somos “capazes” de nos privar de algo bom e necessário para a vida (o alimento material), não teremos desculpas para não sermos capazes de uma privação mais importante para o nosso crescimento humano e espiritual, isto é, o humilde esforço de nos privarmos de pensamentos, palavras e gestos que reforçam o nosso egoísmo, ambição, maledicência. Por outro lado, o autêntico jejum não resulta apenas numa privação de alimentos num determinado período, mas nos favorece condições de partilha, de solidariedade e de prática da justiça do Reino. O que não como hoje por opção de fé, não deve permanecer na despensa para ser comido amanhã, mas deve tornar-se sacrifício agradável a Deus, isto é, compartilhado com quem é obrigado a fazer jejum por condição. 
A esmola, a oração e o jejum, motivados pela fé e não simplesmente pela aparência da vaidade religiosa ou pelo prazer da recompensa imediatista, nos ajudam a recuperar o dinamismo original da vida. Não são práticas isoladas aprisionadas pelo rigorismo da lei, mas atitudes que nos humanizam.
A esmola nos ajuda a estabelecer relacionamentos autênticos com o semelhante com quem devo repartir o que foi colocado à disposição de todos. Não é dar do que me sobra, mas reconhecer efetivamente que acima do meu está o nosso. Portanto, as mãos que repartem verdadeiramente não podem estar ocupadas com uma trombeta a chamar atenção para si. A esquerda não sabe o que faz a direita, porque ambas estão empenhadas em repartir e não em competir. 
A oração nos coloca diante de Deus para adorá-lo e não diante dos outros para sermos vistos. A autêntica atitude orante nos coloca de joelhos, faz-nos humildes diante do Pai e não nos permite colocar-nos de pé diante dos homens para que nos vejam e nos louvem. Esquinas e praças e até sinagogas podem nos motivar a falar, mas não necessariamente a falar com Deus.  
O jejum nos favorece a experiência do desapego de si mesmo, desperta em nós a  capacidade de tomar decisões e fazer escolhas e não apenas nos deixarmos conduzir por impulsos instintivos; é o exercício mais eficaz para darmos passos qualitativos no nosso processo de ser gente e não apenas de sermos animais. Portanto, não nos desfigura nem muito menos nos torna tristes, mas pelo contrário, nos configura Àquele que “sendo Deus se esvaziou e tornou-se servo, assumindo a nossa condição” (Fl 2,7). E como diz ainda São Paulo: “Em verdade, somos por Deus o bom odor de Cristo... Não somos como aqueles que falsificam a palavra de Deus...” (2Cor 2,15.17). 
A Quaresma não é um parêntese para fazermos um esforço temporário de ser bonzinhos ou piedosos de vitrine, mas um caminho de aprendizado para nos tornarmos cada vez mais filhos de Deus, superando a hipocrisia da religião de aparência, e assumindo um processo de conversão de nossas atitudes e relacionamentos para com os nossos semelhantes, para com Deus e para consigo mesmo.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana