III Domingo da Páscoa: Lc 24,35-48 - “Eucaristia: presença e martírio”

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

O início da perícope evangélica deste Domingo: “Os dois discípulos contaram o que tinha acontecido no caminho e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão”, não é apenas a síntese da experiência do caminho para Emaús, mas representa o itinerário que a Igreja de todos os tempos deve fazer para manter-se fiel à sua missão de comunidade das testemunhas do Ressuscitado. Sem uma renovação constante do encontro com o Senhor morto e ressuscitado, através da escuta de sua Palavra e da participação no seu corpo e sangue na Eucaristia, a Igreja perde a sua identidade e não cumpre a sua missão. 
Quando os evangelistas registraram os relatos das aparições de Jesus não pretendiam enfocar uma experiência inédita para alguns privilegiados, mas evidenciar que o Senhor se faz presente constantemente na Igreja quando essa se alimenta da sua Palavra e do seu corpo e sangue. Porém, a Igreja não evoca simplesmente uma lembrança piedosa da pessoa de Jesus, mas o reconhece presente realmente no hoje da história. A celebração da Eucaristia não é uma projeção psicológica fruto da dor de uma ausência nem muito menos um rito para alimentar uma doce ilusão de uma sensação de presença garantida por sentimentalismos. 
O encontro com o Senhor ressuscitado a cada Eucaristia não tem outra finalidade senão atualizar a sua ação redentora: a reconciliação com Deus, cujo fruto mais precioso é a paz. Portanto, nesta saudação: “A paz esteja convosco”, Jesus não dirige apenas um cordial e costumeiro cumprimento, mas indica o único caminho para poder alcançar a verdadeira paz: a sua cruz. Por isso, logo após fazer a saudação, o Senhor diz: “Vede minhas mãos e meus pés: sou eu mesmo!” É evidente que Jesus não está apenas mostrando partes do seu corpo, mas dando aos discípulos a prova irrefutável de que é ele mesmo, isto é, as mãos e pés perfurados só podem ser daquele que fora crucificado, e, portanto, não deve ser confundido com nenhum outro, nem muito menos com um personagem inexistente, ou seja, um fantasma.
A paz dada por Jesus não é um simples desejo ainda não realizado, mas é o resultado de sua batalha na cruz, já realizada e vencida. Por conseguinte, sem a cruz é impossível alcançar a paz; a paz sem a cruz não é a paz do Ressuscitado; será apenas um alívio momentâneo garantido pelo fantasma da ilusão de quem está fugindo dos conflitos próprios da vida e das consequências das opções feitas, e que busca proteção na sua zona de conforto. O Shalom de Jesus não é representado por uma bandeira branca, muitas vezes levantada euforicamente em nossas praças, mas que depois de recolhida, volta a ser o que não pode deixar de ser, um simples recorte de pano. O Shalom de Jesus é mais do que um desejo ou um símbolo, é a sua cruz, a sua entrega.    
Pedindo algo para comer, Jesus não manifesta uma necessidade material sua, mas reconhece a necessidade da comunidade de vencer a incredulidade de reconhecê-lo como o Filho de Deus, que se encarnou, morreu e está vivo. Vale salientar que a palavra escolhida por Lucas para peixe não é opsarion, mas justamente Ixthus (geralmente se faz uma diferença no grego: opsarion o peixe pescado, que deve ser preparado para o consumo, enquanto Ixthus geralmente o peixe com vida, ainda na água). Curioso que usando a palavra para peixe vivo e dizendo que estava assado (paradoxo), ou seja, morto para ser alimento, Lucas sutilmente aponta para a realidade presente na Eucaristia: o Cristo morto e ressuscitado, que se dá em alimento. A Eucaristia como alimento fere a lógica natural, pois não se come nada vivo. Mas na perspectiva de fé, a Eucaristia é um alimento da vida eterna. A dúvida no coração é que precisa ser banida e não simplesmente buscar explicações racionais para tal realidade paradoxal.
Mais tarde os cristãos irão utilizar essa palavra (IXTHUS) como um acróstico que servirá de senha interna de identificação, pois cada letra indica início de palavras que, por sua vez, formam uma expressão de fé (I: Jesus, X: Cristo, Th: de Deus, Y: filho, S: salvador: Jesus Cristo, filho de Deus Salvador). 
Jesus aparecendo aos seus discípulos não quer apenas provar para eles que está vivo, mas reafirmar que eles devem assumir a missão, por isso diz-lhes: “Vós sereis testemunhas de tudo isso”.
Este é o mandato de Jesus, no final do evangelho de Lucas, que reaparecerá no início dos Atos dos Apóstolos (1,8). A palavra testemunha na língua grega é mártir cuja expressão mais perfeita é dar a vida. Contudo, Jesus ao confirmar os discípulos como seus mártires não estava declarando-os destinados à morte como objetivo da missão, porém não exclui esta possibilidade, pois dissera uma vez: “E por minha causa sereis levados à presença de governadores e de reis, para dar testemunho perante eles e perante as nações” (Mt 10,18). Constituindo os seus mártires, Jesus os confirma na missão de levar aos “ausentes” os fatos que os próprios discípulos presenciaram e tomaram parte. Ser mártir de Jesus é prolongar no tempo e no espaço a experiência da sua vida, morte e ressurreição que historicamente foi compartilhada pelos seus contemporâneos, mas que é possível também de ser assumida e vivida por todas as gerações que sintonizam com essa realidade pela adesão de fé às primeiras testemunhas. Celebrar a Eucaristia, memorial do mistério pascal, é garantir essa sintonia com Cristo e com a Igreja que é o seu corpo. Celebrar a Páscoa é reconhecer a presença no Senhor, morto e ressuscitado, que nos nutre com sua palavra e seu corpo e sangue, para dele sermos testemunhas.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana