II Domingo da Páscoa: Jo 20,19-31 - Misericórdia: o coração divino toca a miséria humana

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

Este Domingo da Oitava da Páscoa, também chamado Domingo da Divina Misericórdia, Festa instituída por São João Paulo II (17.08.2002), cuja inspiração se encontra nas experiências místicas de Santa Faustina Kowalska (1905-1938), nos apresenta os fundamentais frutos da ressurreição do Senhor: a paz, a alegria, a missão, o Espírito Santo, o perdão. Porém, a condição indispensável para poder participar de todos esses dons concedidos pelo Ressuscitado é a fé: “Bem-aventurados os que creram sem terem visto”. Por outro lado, crer aqui significar aceitar ser objeto da misericórdia de Deus, deixar-se amar por Ele, que toma a inciativa de vir ao nosso encontro, favorecendo-nos a possibilidade de fazer experiência da sua misericórdia. Porém, é preciso lembrar que não foi a partir de Santa Faustina que a Igreja começou a proclamar a Misericórdia Divina, pois desde os primórdios do Cristianismo o centro da vida da comunidade do Ressuscitado é a experiência do amor de Deus, manifestado sobretudo na sua misericórdia. Não haveria autêntico anúncio do evangelho se não fosse proclamação de que Deus nos ama, nos perdoa, nos acolhe. Estas são as provas de que Ele é verdadeiramente misericordioso. 
Contudo, a experiência dos santos ao longo da história, e entre eles, Santa Faustina, serve-nos de alerta, de chamada de atenção para algumas verdades fundamentais que são deixadas de lado ou mesmo esquecidas em alguns setores da sociedade, inclusive da própria Igreja.
Por conseguinte, celebrar a Divina Misericórdia é mais do que difundir uma devoção, pois deve ser a nossa experiência cotidiana do amor de Deus, que nos deu a grande prova, entregando-nos o seu Filho para a nossa salvação. A contemplação do Coração traspassado, de onde saiu sangue e água (ícone de Jesus Misericordioso), nos transporta espiritualmente não apenas para uma experiência mística de Santa Faustina, mas nos coloca diante do grande mistério do Amor misericordioso de Deus. Amor que não cansa de se manifestar, a fim de que possamos reconhecê-lo e, também, amá-lo. 
A oração da coleta deste Domingo, rezada muito antes da instituição da festa da Divina Misericórdia, nos ajuda a penetrar no significado profundo da celebração de hoje. Dirigimo-nos ao Pai chamando-o de “Deus de eterna misericórdia”, o que será retomado no Salmo Responsorial (117); portanto, a misericórdia está no centro da nossa fé a qual precisa ser “reacendida” constantemente, de modo particular, “na renovação da festa da Páscoa”. Tudo isto em vista de uma melhor compreensão do “batismo que nos lavou, o Espírito que nos deu nova vida e o sangue que nos remiu”. 
O ponto alto da revelação deste movimento de misericórdia de Deus encontra-se no hodierno relato do evangelho. Sendo a misericórdia o encontro do coração de Deus com a miséria humana (Santo Agostinho), a experiência da comunidade com o Senhor ressuscitado ilustra muito bem esta verdade da misericórdia de Deus que vem ao encontro das misérias humanas para transformá-las. A ressurreição do Senhor não é uma realidade que se restringe a Ele apenas, mas alcança a humanidade, da qual se exige a fé. Portanto, a experiência da comunidade primitiva com o Ressuscitado se deu quando o próprio Senhor deixou-se tocar o coração pela miséria dos seus discípulos e ajudou-os a abrir-se à sua misericórdia.
Por isso, diante da miséria do medo e da covardia dos discípulos que fecharam as portas do lugar onde estavam, manifesta-se a misericórdia do Ressuscitado que rompe as falsas proteções e coloca-se no meio deles, desejando-lhes: “A paz esteja convosco”. Diante da miséria da tristeza que inundava o coração dos discípulos por causa da morte do Mestre, manifesta-se a misericórdia do Crucificado cujas mãos e lado trazem as marcas da cruz, mas que está vivo e, por isso, torna-se a causa de alegria para eles. Diante da miséria dos discípulos, que tinham se afastado do Mestre e da missão que lhes havia confiado, manifesta-se a misericórdia do Enviado do Pai que vem ao encontro deles e, ao desejar-lhes a paz, renova o chamado que lhes fizera, confirmando-os na missão: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”.
Diante da miséria dos discípulos aprisionados numa casa (símbolo do seu sepulcro), manifesta-se a misericórdia do Vencedor da morte, que saindo do seu sepulcro entra no sepulcro dos seus discípulos para conceder-lhes vida nova: “Recebei o Espírito Santo”, e assim arrancá-los da sepultura que eles mesmos tinham construído para si (cenáculo trancado). Diante da miséria da traição do Mestre, manifesta-se a misericórdia do Deus que não se cansa de perdoar, não apenas perdoando os pecados dos discípulos, mas tornando-os instrumentos do seu perdão: “A quem perdoardes os pecados, eles lhe serão perdoados...”. Diante da miséria da falta de fé (Tomé), manifesta-se a Divina Misericórdia, que permite deixar-se tocar a fim de que o incrédulo seja tocado e recupere a salvação.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana