Exaltação da Santa Cruz: Jo 3,13-17 - Nossa glória é a cruz, onde nos salvou Jesus

Por: Dom André Vital Félix da Silva, SCJ

A Festa da Exaltação da Santa Cruz (solenidade este ano), para além das suas razões históricas (Dedicação de duas Basílicas constantinianas de Jerusalém, em 335), é uma celebração que ressalta a verdade do amor de Deus revelado no seu Filho pregado na cruz: “Deus amou tanto o mundo que enviou o seu Filho para que o mundo seja salvo por Ele”. A salvação não se realiza simplesmente porque Jesus morreu na cruz, mas porque na morte de cruz Ele nos deu a grande prova de amor. Foi o amor com que sofreu e morreu que nos salvou. A morte em si não tem poder de salvar, mas só o amor que se entrega, que dá a vida é capaz de salvar. 
A crucifixão como pena de morte é anterior aos romanos; estudiosos defendem que se originou na Pérsia no séc. VI a.C.  Além de ser humilhante e cruelmente dolorosa, tornava-se um verdadeiro espetáculo aterrador que pretendia inibir práticas que pudessem levar a tal condenação, tinha caráter punitivo e exemplar. Os condenados, além de sofrerem dores físicas e psicológicas terríveis, eram humilhados moralmente pois estavam despidos na cruz, sem nenhuma possibilidade de autodefesa e proteção.
A morte de Jesus, objetivamente falando, poderia ser interpretada como resultado de uma decisão da crueldade das autoridades do seu tempo, isto seria simplesmente um homicídio, um assassinato injusto. Contudo, Jesus não foi obrigado a morrer, mas aceitou morrer: “Ninguém tira a minha vida, mas eu a dou livremente. Tenho poder de entregá-la e poder de retomá-la” (Jo 10,18). 
A causa mais profunda de sua morte se encontra na coerência de quem decidiu amar até os extremos. Na cruz, Ele não apenas morreu, como tantos outros ao longo da história, mas na cruz Ele confirmou o que foi a sua vida toda: “Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1).
Na Sexta-feira Santa, a Igreja ergue a cruz aos poucos desvelada, convidando-nos à sua veneração, pois dela pendeu a salvação do mundo; recorda-nos, assim, que não podemos separar o Cristo da Cruz, caso contrário, ela perderia a sua identidade e muito menos seria digna de veneração. De forma pedagógica, como é próprio da liturgia, a Igreja naquela tarde em profunda veneração da Sagrada Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, nos ajuda a não esquecer da grandiosa obra do amor misericordioso do Senhor, como rezamos no salmo responsorial de hoje: “Das obras do Senhor, ó meu povo, não te esqueça” (Sl 77). A linguagem simbólica socorre a nossa deficiente memória, tem força evocativa mais forte do que discursos e palavras. Contemplar o crucificado é recuperar a memória de que Deus nos ama verdadeiramente.   
Não podemos esquecer que a Cruz que exaltamos não é qualquer cruz, mas a Santa, a de Cristo que se tornou a nossa glória como afirma São Paulo: “Quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6,14). A rejeição à cruz é consequência de uma postura equivocada de quem a separou de Cristo, tornando-se assim seu inimigo (cf. Fl 3,18). Já desde o Cristianismo primitivo até nossos dias verifica-se essa tentação de anunciar o Cristo sem a cruz, ou no máximo exibir a cruz sem o Cristo, com a desculpa de que Ele já está ressuscitado e que não haveria sentido falar mais da sua cruz-morte. Porém, o próprio Senhor ressuscitado, aparecendo aos discípulos no cenáculo, mostra-lhes as mãos perfuradas e seu lado aberto, uma referência clara e uma prova irrefutável de que era o crucificado (cf. Jo 20,20). Até porque se não fosse o mesmo Senhor morto-ressuscitado, o anúncio da ressurreição poderia ser considerado uma invenção paranoica dos discípulos golpeados pela dor da morte do Mestre. 
O evangelho de hoje, um trecho do diálogo de revelação de Jesus com Nicodemos, sublinha a íntima e indestrutível relação entre Jesus e a sua missão que culminará na cruz, início da sua exaltação: “É necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a vida eterna”. A expressão grega: “É necessário” (dei) aparece muitas vezes no contexto da missão de Jesus (Mc 8,31;13,7; Lc 2,49; 4,43;9,22) para indicar uma necessidade essencial, algo que deve se cumprir impreterivelmente, sem alternativas. Por isso, a cruz faz parte essencial da realização da missão salvífica de Jesus, pois foi assim que aconteceu. Consequentemente, levantar outras possibilidades de salvação sem a morte de cruz não passaria de especulações vazias e desperdício de tempo.
Ser levantado” tem alcance concreto e totalizante: O Cristo crucificado, momento do testemunho do amor perfeito: “Não há maior prova de amor do que dar a vida” (Jo 15,13). Nele se realiza a justiça de Deus: “Quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32). A comparação que Jesus faz entre a serpente de bronze erguida e o Filho do homem levantado confirma a unidade dos dois Testamentos (Antigo: anúncio; Novo: cumprimento), pois o símbolo da serpente de bronze levantada numa haste (1ª leitura) é, acima de tudo, o julgamento de Deus diante do pecado do seu povo. Julgamento para dar a vida e não a morte àqueles que se arrependem: “Aquele que for mordido e olhar para ela, viverá”. 
O esvaziamento de Jesus (grego: kénosis) faz parte de um movimento cuja direção é a sua exaltação. Assim como se fez pobre para nos enriquecer (cf. 2Cor 8,9), a sua humilhação, assumindo a nossa condição humana, fazendo-se escravo, testemunhou a sua obediência até as últimas consequências, isto é, a morte de cruz. A exaltação do Cristo crucificado tem seu auge na glorificação definitiva que o próprio Pai lhe concede: “Por isso Deus o exaltou e lhe deu o nome que está acima de todo nome” (2ª leitura). 
Na celebração de hoje, a Igreja não venera um objeto de suplício, mas proclama uma verdade que nos salva: o amor de Deus revelado e provado no seu Filho que não hesitou em dar a sua vida por nós. Arrancar o Cristo da cruz é negar a sua fidelidade; banir a sua cruz de entre nós é rejeitar o seu amor e abandonar o seu caminho. Com toda a Igreja não cansemos de confessar: “Nós vos adoramos, Senhor Jesus Cristo, e vos bendizemos porque pela vossa santa cruz remistes o mundo”.



Dom André Vital Félix da Silva, SCJ
Bispo da Diocese de Limoeiro do Norte – CE
Mestre em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Gregoriana